27/09/2008

Poetas e poemas

O poeta de que hoje apresentamos dois poemas foi um dos maiores da língua portuguesa do século XX. Foi poeta e artista, um representante maior do surrealismo português. Os dois poemas que a seguir transcrevemos foram retirados de um livro famoso: PENA CAPITAL. E mais não dizemos. Convém apreciar a poesia.

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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny [1923 - 2006]


voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde "a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela"
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
"a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao
sol coisa nenhuma"
nada está escrito afinal

Mário Cesariny [1923 - 2006]

1 comentário:

Anónimo disse...

No meu blogue "TOMBUCTU", dedicado a apontamentos de viagens, assinado por Francisco Costa, ficou um comentário ao qual ainda não tinha tido tempo de responder. O clicar no comentador trouxe-me para aqui e é aqui que digo: Tenho o máximo de consideração e até afecto por Castelo Branco e todo o seu espaço geográfico. Brevemente, entre os meus apontamentos, escolherei um em que digo mais ou menos que em Castelo Branco, como noutras cidades, o 'POLIS' não resolveu o problema do ermamento dos centros históricos e até cívicos. Entre 1963 e 1972 fui casado com uma albicastrense de S. Vicente da Beira e visitava e fazia estadas mais ou menos longas nessas paragens. Guardo desses tempos e dessas terras muito boas memórias. Escreverei sobre isso se Deus quiser. Cumprimentos agradecidos do
Maia de Carvalho